segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Dissonante

Toda sexta-feira o mundo acabava, mas naquela não. A primeira a perceber foi Martinha: o céu limpo, o sol frio e branco, sem nenhum dedo de vermelho lambendo o longe. Baixou logo os olhos, procurando o gato: "Pssst, Marco. Marco!". Não estava no canto de sempre, tentando comer a parede. Correu pra cozinha, confusa mas ainda não pensando, e do lado da geladeira: Marco. Sem ovos de galinha no lugar dos olhos, sem pêlos que pareciam feitos de ouro: só um gato gordo e cinza, que a observou sem nenhuma atenção, como só os gatos e alguns amantes conseguem fazer.

Foi só então que ela pensou: não acabou. O pensamento desabou sobre seu cabelo curto como um ovo morto, e foi escorrendo pela espinha sem pressa. Ela previu que fosse começar a tremer, mas não. As duas mãos estáticas, também como que mortas. Testou os pés e incrivelmente marchou para fora de casa, na gincana inexplicável dos músculos que ninguém nem pensa em controlar.

Jorge estava chegando na praça, sem camisa, olhos vermelhos e cheirando a cachaça. Andou até o corpo de Martinha e tentou tocá-la, gaguejando. "Como?". Ela deu um tapa na mão intrusa, mais aviso que agressão. Ele não pareceu sentir, mas interrompeu o passo. Ficaram os dois, em silêncio, olhando para o céu, ouvidos atentos. Os gritos que viravam música não soaram.

Logo todo mundo chegou: uma confederação de mudos. Mais do que um bocado já estavam mortos: eram atores profissionais, jamais seriam interrompidos por frivolidades como o cancelamento da peça. Pairavam prontos para saltar sobre a deixa certa e declamar: "...Sem sentido algum!" ou "E assim será. Amém!", ao gosto do freguês. Um deles chegava a falar sem som, repetindo seu grande momento, lábios quietos, para não esquecer. Martinha manteve os olhos nele por alguns minutos até se sentir obrigada a desviar, entre enojada e triste.

Ela percebeu que ninguém iria falar. Iam criar raízes na praça até que o mundo acabasse de novo, sabe-se lá quando. Ela não gostava do som da própria voz, mas não viu escolha: "Não acabou. Não sei o motivo, mas não acabou." Ninguém estava fazendo barulho, mas assim mesmo ficaram mais silenciosos. Só o gato continuava andando, às vezes arranhando um sapato sem muito ânimo. Quando Martinha sentiu a mudez beirar o insuportável, o filho mais velho da Laura falou: "Pode estar acabando de outro jeito. Ou ter mudado o horário. Você não sabe." O alívio das palavras era tão grande que responder soou fácil, simples: "Acaba do mesmo jeito desde sempre. O céu, os gatos, as árvores, o sangue. E a gente sempre sabe quando está acabando. Você sabe que sabe." O menino não disse nada, só ganiu. Ela pensou em buscar o seu nome, mas desistiu quase imediatamente: não era importante. "A gente precisa fazer algo. Sair daqui. Ir falar com alguém." Dessa vez reagiram mais: uma moça gritou, e um dos seus vizinhos bateu com o pé no chão. "Claro que não. Você sabe que quando saímos só acaba lá fora também. Pra todo mundo. E é pior. Não, de jeito nenhum." Várias vozes entrelaçadas concordaram, ecoaram, pouco sentido nas palavras, só um clamor geral. Martinha não tentou argumentar, virou as costas e saiu andando. O vizinho gritou: "Onde você vai? É melhor ficar aqui! Você sabe disso." Martinha não olhou pra trás e respondeu, mais pra si mesma do que pros outros: "Eu vou falar com Deus."

Quando o mundo acabava, o morro se derramava sobre a cidade em geometrias estranhas, imenso e risível ao mesmo tempo. Agora, ele se mantinha longe, e a caminhada foi um pouco cansativa. Sem saber o porquê, só conseguia pensar em aprender a tocar piano. Talvez tivesse pensado nisso uma vez, não tinha certeza. Nem lembrava de já ter visto pessoalmente um piano, mas os dedos já se agitavam com prazer, e mesmo as cãibras que esperava ter eram adocicadas em seus tendões.

Chegou à montanha. A cor era diferente hoje: cor de terra, despenada, sangrando. Nada do verde grosseiro do fim. Sem saber a melhor abordagem, disse simplesmente: "Deus."

Para a surpresa de ninguém, Ele respondeu. "Sim, minha filha. Como posso te ajudar?" A voz era o morro, o vento, a terra, e ela mesma, mas também era ninguém. Durante o fim, nunca soava tão solitária. "Quero saber por que não acabou hoje. Sempre acabou, mas hoje não. Você está assustando todo mundo." O silêncio de um segundo também foi grande, amplo. "Eu não sei do que você fala, minha filha. Eu sou sem princípio nem fim."

Ela ergueu os olhos, por instinto, como milhões fizeram por tantos anos, e tentou se dirigir ao Sol, mas sua vista ardeu. Parecia ter ficado mais forte naquele instante. Com as mãos fazendo sombra, respondeu: "É claro que você sabe! Tudo acaba, toda semana. O sol se apaga, os bichos, o sangue, as trombetas, guerra, e o nada. E aí tudo de novo! Você sabe, claro que você sabe!"

A resposta dessa vez foi imediata: o chão tremeu, se contraindo, e a montanha começou a pulsar, gorda, em conluio com um vento suspeito. A voz veio gritante e ritmada:

"Pra começo
de conversa
lembre sempre:
Sou Senhor.
Não lhe devo
a resposta
nem carícias
nem amor.

Seu passeio
é pequeno
seu suspiro
um torpor.
Não lhe vejo
não me importo
não fiz nada
de valor."

A música lhe fez vomitar imediatamente, e quando recuperou o fôlego, a montanha tinha sumido, deixando para trás um descampado triste. Ela passou os dedos pela terra, e era só terra.

Restava outra opção.

O caminho até o rio foi quieto. Tentava pensar nas palavras que Ele tinha dito, mas a melodia soava mais forte, como um sussurro ou zumbido, até que sua cabeça começava a doer. Mas sabia que ele tinha se esquivado.

Tirou os sapatos, a blusa, a saia, as meias e a roupa de baixo. Encostou de leve os pés na água fria e disse: "Eu quero fazer um acordo."

Quando tudo acabava, os acordos eram uma piada sem graça: ninguém podia evitar o inevitável, e barganhar tão perto do fim era sempre um mau negócio. Eles tinham aprendido isso com o tempo. Agora, porém, parecia que estavam jogando outro jogo. A sedução da aposta era inevitável.

Ele se sentou do lado dela, untuoso. As suas roupas eram na verdade tatuagens, de cores para as quais nunca conseguimos dar nomes. Ele sempre sorria e não sorria. "Diga."

"Por que não acabou? Não é justo. Ninguém sabe o que fazer." Ele espalhou água com os pés, vestidos de couro, e disse: "Esse não é meu departamento. É com Ele."

Ela suspirou: "Ele disse que não fez nada. Que não sabe do que eu estou falando. Eu não quero nada com ele. Só quero saber o que houve."

Ele gargalhou, e o rio gargalhou junto, os peixes trêmulos e sinistros pulando contra suas vontades. "Já era hora de vocês perceberem. De não confiar num velho que nem lembra onde guardou a si mesmo. Já passou da hora, na verdade. Aleluia!"

Quanto mais tempo de conversa, mais a água fria do rio queimava seu pé. Ela sabia que a febre já estava chegando. "E é isso que você tem a me oferecer? Só risadas? Eu quero saber."

Ele se levantou, e era mais alto que uma casa. Ela não lhe ofereceu os olhos. "Nós podemos nadar juntos, se quiser. Pra outro lugar. Essa cidade toda é um nada. Mesmo sem acabar. O segredo é esse: nem Ele sabe porque acaba. Só aparece quando ouve as trombetas. Deve ter perdido as chaves há muito tempo." Ela não se moveu, e não tocou a mão que ele estendia. "Eu não acredito em você."

"É justo. Mas isso tudo é nada, e nadar é tão melhor."

Os dedos rasparam o ombro dela por um instante, e sentiu a febre fria explodir. Os olhos sangrando secos, fechados, até que deu um salto pra longe. "Não. Eu não gosto de nadar. E não tenho toalha."

Ele não respondeu, a não ser que o salto duro no rio tenha sido uma resposta. Ela se surpreendeu com a ideia de que ele tivesse se ofendido. Olhou para o alto, e era noite. O frio começou a doer, mas suas roupas tinham sumido.

Andou de volta até a cidade contando seus passos, como criança, sem conseguir pensar em nada que não fosse a morte. Os pés sangraram logo, em debate com as pedrinhas, e o suor frio grudava seu cabelo à testa como um chapéu incômodo.

Já de longe, percebeu que as luzes não estavam acesas. Não havia fogo, tampouco, nem ruído algum.

Chegou à praça e, sob a lua, viu os corpos. Era uma quadrilha. Carlos matava Julia que matava Dora que matava Pedro... Ela só conseguiu pensar que o cheiro pela manhã seria insuportável.

Ouviu um ruído mas não teve tempo de se espantar: era Marco, lambendo o rosto vermelho do padre. Ela tocou seu rabo gordo e ele respondeu com um rosnado preguiçoso. A batina do padre parecia quente, e as sandálias eram confortáveis. Logo o frio passou.

Olhou mais uma vez para todos e para o coreto, que só agora ela percebia achar feio, pobre. Virou-lhe as costas novamente, e começou a andar, mais devagar que antes mas decidida. Estalou os dedos e chamou: "Psssst. Marco!" O gato saltou desengonçado atrás dela, os bigodes sujos entrelaçados.

Podia chegar na capital ao meio dia, se descansasse pouco. Ela ia aprender a tocar piano, e já tinha uma canção.