Tenho dois óculos. Iguais, no âmago: dois óculos com três graus de miopia, antirreflexo, pretos, se adaptam bem ao meu rosto. Seriam diferentes em detalhes pequenos: um pouco menor, um pouco mais fino, um pouco mais retangular. O outro (mais fino) é novo: de ontem. O grau parece mais fraco. Alguma tontura. Coloquei ele de lado e ela sorri pra mim meio brava. Como se tivesse ficado puta com o fracasso, e fosse embora com as cordas, batendo o pé.
Quando foi, não fiquei surpreso. Encontraria a chave dela na porta e nenhum aviso; perdi.
O estranho seria ela não levar mais nada, só as chaves: agora sobrou, além de móveis, xampu, frigideira e livros-outros, um armário cheio de roupas. Foram inúteis: vestidos e sapatos pequenos.
Não haveria motivo para esse armário: tenho como missão futura criar sentido nessas coisas.
Sempre serei um homem de registros: desde o nascimento de meus dentes até o dia em que perderei minhas pernas, sou ativamente testemunha dos embates de forças de ação/reação que envolveriam minha vida. Um amigo que eu conhecia, certa vez, me dissera, sussurrando, a confirmação: disse-me que eu sabia, apenas: que eu sei, antes que eu o esquecesse.
Se eu conseguir, quando ela sair, já perdi a inação: quisera chorar – só serei reação. Vejo agora pelos óculos novos: jamais seriam iguais aos outros, isso será uma ilusão – foram forjados visando uma manipulação óbvia.
Que seja eu, desse jeito, ferramenta: não me ouçam, façam como se vissem acontecer.
Houve um espaço de mulher e há um armário: eu estava olhando com um olho para cada. Será dito que as coisas têm um destino: eu o forjaria, se assim é o pedido. Com as roupas vem uma responsabilidade: Alice ausente não mais as vestirá. Recebi, portanto, uma nova mulher que habitará esses panos: eu a abracei como a um fantasma – invisível ela seria. Há uma fogueira das crianças na rua – lá no fogo eu queimara os tecidos, já amanhã mais cedo, a memória deixará de flutuar – as cinzas sumiriam não tivessem o cheiro que eu sinto em fechar os olhos. Farei, então, o entrar-em-si: olhava fundo e dei os passos rumo à caixa, me entregarei impassível, seria engolido.
As roupas me abraçam – essa será minha pira funerária – me vestiam me anularam: olhem atentamente para esse desaparecimento.
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5 comentários:
"Com as roupas vem uma responsabilidade: (...)olhem atentamente para esse desaparecimento."
essa foi a parte que eu mais gostei :} não sei dizer o por que. talvez a sutileza com que se nota as coisas acontecendo, em especial no último parágrafo.
Isso não são óculos, é tevelisão.
Não feche os olhos.
Que bosta de texto.
Quanta pretensão esse blog.
Jaime Cartesian.
Que bosta de nome.
Assim, mesmo. Jaime é nome de motorista de novela ruim e Cartesian é escroto.
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