quarta-feira, 10 de outubro de 2012

carta do além-mar.

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me desculpe a falta de formalidade ou de introdução ou de gramática ou de estilo mas você não sabe, desculpa, sei que é deseducado dizer esse tipo de coisa, entrar na cabeça dos outros, mas você não sabe, mesmo, o quanto eu sinto a sua falta, o quanto eu ardo, ardo, que palavra horrível, mas o quanto eu me sinto arder, mesmo, de dor, deitado, uma febre fantasma, absurda, que o termômetro imbecil não enxerga, o quanto eu me sinto queimando e desaparecendo deitado sozinho, o quanto o meu corpo me parece ridículo, vazio, o quanto eu me sinto com vontade de chorar sozinho lambendo as paredes, e o quanto é difícil mesmo falar isso, mesmo que eu não esteja falando, eu sinto minha garganta engarrafada na ponta dos meus dedos, é difícil, mas não é tão difícil quanto deitar sozinho, e pensar em nós dois naquela vida, que já é outra vida, outro século, outro continente, outro sol, e agora parece que eu sou só um cobertor a mais na minha cama, tem a roupa de cama, o lençol, o edredom e eu, mais uma camada só, mais fina, estático e espalhado, e eu fico pensando nos meus dedos desenrolados, quebradiços, eu inteiro quebradiço, como uma ponta de fio de cabelo se partindo em dois, mas eu sou um só, não posso me abrir ao meio e abraçar o meu estômago, e eu vejo você nas cortinas, feito fantasma, e vejo você nas cadeiras, girando, com uma pressão enorme sobre o centro, até desaparecerem, quando a cadeira sumir dentro do próprio círculo eu posso começar a pensar em sentar nela de novo, tantas etapas nessa ação, tão difícil, e é difícil sair andando, as coisas mais simples, como se as minhas pernas não fossem minhas, e é claro que elas não são, e é isso que me deixa triste, você me roubou de mim, não é uma acusação, não é ódio, eu planejei esse roubo com você, não quero lhe imputar crime nenhum, mas isso é verdade, não posso mais mandar em nada, no máximo o lamento impotente de talvez um cachorro preso na área de serviço, pequeno, ridículo, sem as orelhas, e os meus olhos fechados explodem, não adianta, eu vejo os seus, como se minhas pálpebras fossem binóculos ou espelho retorcido, agora, ridículo usar a palavra agora, agora que eu vivo num tempo sem tempo, tentando me arrastar no meio de um tempo que é quase geléia, agora eu podia gritar, podia tentar gritar por anos, mas não ia passar mais de um segundo até eu ficar rouco, e de que ia adiantar, você não ia me ouvir, eu não sou barítono, eu não sou tenor, eu não sei cantar, só com você, pra você, e tudo que eu digo é água salgada, quando eu abro a boca só consigo vomitar o mar, todo um oceano de absurdos, mas nem nadar neles eu consigo, eles evaporam, o sol é mais forte, e o que me restou é tentar correr, correr de olhos fechados e rezar, rezando pra que as árvores sejam derrubadas antes que eu chegue, pra que os buracos sejam tampados, mas quem pode contar com isso, me diz, ninguém, e então isso é muito necessariamente uma tragédia, desenhado como tragédia, contado como tragédia, porque dentro de mim as coisas só sabem ser sussurros de quem sofre, eu sei, a culpa é minha, claro que é, mas eu só sei falar a verdade, pelo menos agora, assim, e o sol grita comigo pra dizer qualquer coisa, eu não sei mais ouvir, os lugares se espalhando por aí feito lagartos, eu abro os olhos e vejo tantas montanhas, tantas montanhas, e em cima delas têm casinhas, gente que mora a vida inteira em uma montanha e por isso sabe que o mundo inteiro é bem pequenininho, nem conseguem ver a gente, essa gente toda tão longe, não consigo imaginar mesmo quando imagino, eu só consigo imaginar barcos, todos eles, as mil caravelas e os transatlânticos e os submarinos, incessantemente derretendo no mar, todos eles zarpando mil vezes por segundo na velocidade da luz, e sempre incapazes, é claro, todos os barcos só âncoras, e enquanto os barcos e as montanhas e os padres e os pássaros, enquanto tudo reza e come e morre, eu deitado, eu penso muito em você, me desculpa, eu sei que isso é invasão de privacidade, ainda que abstrata, invadir você assim, mas eu não mando em mim, te disse, eu deitado aqui suando e sonhando junto dos meus cobertores, nos meus sonhos eu amo você, você sabe, e quando eu acordo também, suado, sem decidir se eu choro ou se não, me desculpa, eu não quero te perturbar, essa é a última coisa que eu quero, mas eu não sei mais o que fazer, essas coisas que eu estou dizendo é que me dizem, eu me sinto muito mais acessório pra isso do que eu mesmo, eu deitado aqui debaixo do ventilador tentando pensar no barulho que ele faz pra não pensar em você.

Um comentário:

Piera disse...

"Julie, eu te amo como ao túmulo"