segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Fábula

Dizem que foi, assim sem menos nem mais, daquele jeito que a turma conta, sem detalhe nem mentira; causo. Entendam os senhores, antes que o Santo Ofício se instaure, que a história não é minha - nem elas podem ser de ninguém, claro seja -, foi contada por um moço muit'stranho que me vim a conhecer n'outro dia; ele andava co's'óculos escuros o tempo todo, mesmo até dentro de casa, e pedia a bênção pr'as pessoas que não eram de Deus: dentista, padeiro, mendigo e bêbado; era no porém muito bem apessoado, e acho que bom também. Mas assim a história (acho qu'estória é melhor), a estória não se adianta, então é melhor que se a conte.
Cumbuca cheia de doces repousa morta no chão frio, mel para as abelhas. O menino jorge se vem aproximando como quem pede a Deus pra que a chuva seja muita, mas enquanto o sono é dormido, porque o dia é pra se viver. A mãe sentrabalha do lado de dentro, a mão cansa dá à roupa o lavar, e o doce lá fora ninguém sabe d'onde veio: não é de casa, que lá não é lugar desses luxos não. O menino não sabe que a mãe não sabe da cumbuca, acha armadilha, and'esquivo com medo da mãe-aparição pra puxar a orelha no espanto: no moment'é espião.
As pernas fazem balé: pé pé pausa pausa pé pépepausa pausapausapé; respira fundo e silêncio. Chega serpenteoso na cumbuca, arrasto no chão: as roupas cheias de terra, a mãe fica brava logo. O menino pousa os olhos sobre a cumbuca com gosto: é tanto que ele nem consegue distinguir os chocolates das rapaduras dos pés-de-moleque dos beijinhos de tudo. É em tal ocorrência qu'a estória se desabrocha e se torna meta, pois que na cabeça de ninguém não se pode ver, pelo menos não eu, me diga você; o menino Jorge viu na cumbuca mais algo que doce, é isso que ele mesmo disse depois, mas nunca soub'explicar, nem sob ameaça de cinta nem sob promessa de nada. Se sabe qu'o menino viu o que viu lá dentro, e caiu pr'a trás, deidesmaiado. Ninguém sabe quanto tempo ficou no chão, porque a mãe só viu o fruto quando saiu pra chamar: desesperou-se. O menino foi pr'hospital da cidade na hora, e botaram na cama antes de dizer nada; fecharam a porta pra genitora e foram doutorizar.
Foram uns tempos de muita tristeza e choro; parente e amigo sem saber o que dizer nem nada; os doutores pedindo perdão e falando que não entendiam como era aquilo; a mãe sentada, sem saber nem mais como se levantava.
Foi é na visita qu'a escola resolveu de se fazer que ocorreu o acontecimento; os colegas, todos meio assustados com o lugar - pré-cemitério cheio de parede mais branca que fantasma -, foram visitar jorge, trouxeram até cartinha, rezaram juntinhos, mas não foi nada. Foi então que a Carol, que era uma menina de muito tímida e quieta, se chegou mais perto do doente e deu um beijinho nele pedindo pr'ele sarar; o olho esquerdo abriu na hora e o direito logo em seguida.
Foi um deus-nos-acuda dos mais caros e bonitos; criançada gritando, a mãe se chegando e abraçando sem nem saber como se fala, os doutores todos coçando a cabeça e sabe-se-lá-o-que-mais. Jorge, mas porém, ignorou a tudo - os médicos perguntando se ele tinha comido algo da cumbuca, docinho que fosse; a mãe pedindo pra ele nunca mais se sair de perto; os amigos perguntando se ele tava sonhando ou no céu, se tinha anjo lá, e o que mais - e ficou mais sério - ainda assim sorriso - do que na vida, olhando no olho da Carol, que ainda não tinha saído de perto dele, e segurando na mão dela, só olhando, esquecendo do que vinha antes, a cumbuca, quem se lembra, os doces, nem queria, tudo aquilo nem era mais nada, ele nem conseguia mais piscar o olho, e o que era aquilo, que ele nem sabia dizer; amor.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Vozes

O ciclo inicia o ciclo inicia o ciclo inicia o ciclo inicia o ciclo inicia...

Ela só sabe correr desse jeito, meio saltando e meio andando rápido, as pernas desencontrando-se a cada passo, dando a impressão de que ela vai cair a qualquer momento. Eu não gosto de ver, me dá aflição. Ela estava na minha frente, conversando, quando virou a cara para mim e saiu correndo, correndo bem rápido. Foi isso que me assustou: ela não corre tão rápido assim, ela não corre certo assim. Ela não parecia estar correndo de brincadeira. Demorei uns dez segundos para perceber isso, e então saí eu mesmo correndo atrás dela. (Você está me ouvindo?) Ela já tinha virado a esquina há algum tempo quando eu cheguei. Olhei para os dois lados e ela não estava lá, não em lugar algum onde eu pudesse vê-la. (Presta atenção! Por favor!) Eu continuei andando para qualquer lado, sem saber direito onde procurar. Têm várias casas na rua onde ela virou, e eu não podia procurar em cada uma. Só passei por perto gritando o nome dela, pedindo pra ela voltar, mas acho que ela não me escutou. Na hora eu pensei que isso não fosse tão importante, mas quando o tempo foi passando eu fui ficando cada vez mais desesperado e agora eu acho que se eu tivesse entrado nas casas procurando talvez tivesse feito alguma diferença e eu simplesmente não consigo parar de pensar nisso porque eu não consigo mais lembrar direito como é a voz dela e isso me desespera e eu não sei.

Eu não sei o que houve, eu pisquei e foi como se eu fosse Deus, olhando a mim mesma correndo (de cima) sem saber pra onde, e você não tem noção de como isso assusta. O estranho é que eu ainda tenho um corpo, algo assim, eu ainda sinto coisas, e ainda consigo respirar, e ouvir meu coração bater. Mas eu continuo assustada... Aí eu vejo ele lá embaixo, correndo atrás de mim, e eu me vejo entrando em alguma casa e a porta fechando, e não consigo entrar lá. Eu grito pra ele VOCÊ ESTÁ ME OUVINDO e ele não percebe, eu peço pra ele prestar atenção e ele não ouve. Ele me procura por mais algum tempo e depois desiste, some de lá, e eu não consigo segui-lo. E aí eu fico lá. Na rua. Olhando as pessoas passarem. Os carros passarem. A porta da casa não abre mais, pelo jeito nem tem ninguém lá.

Eu acordo de manhã às seis. Eu faço meu café como todos os dias. Eu assisto à televisão e (Tranque a porta!) quase durmo sentado no sofá. Eu me levanto do sofá e vou tomar um banho. Eu me seco e deito na cama, sem fazer nada, durante algum tempo. Eu leio o jornal e não há nada de novo. Eu me masturbo deitado na cama e seco minhas mãos em uma toalha. Eu vou à (Não deixe ninguém entrar!) cozinha. Eu preparo o almoço. Eu começo a comer quando ouço passos. Eu continuo comendo quando a porta se abre. Eu não vejo quem entrou. Eu faço silêncio. Eu vejo uma garota passar direto, sem olhar para mim. Eu continuo comendo quando ela sobe as escadas. Eu termino o almoço e o coloco na pia. Eu subo para o banheiro e escovo os dentes. Eu encontro a garota deitada na minha cama. Eu me deito sobre ela. Eu faço sexo com ela. Eu digo algo e ela não responde. Eu a sacudo (Expulse a menina daí!) e ela não se mexe. Eu saio da cama e tomo um banho. Eu (Livre-se do corpo) vivo normalmente. Eu sou preso dois meses depois. Eu sou jul(Seja amigável com a polícia! Com o júri!)gado e condenado. Eu vou para a prisão. Eu tento conser(Conserte o passado!)tar o passado. Eu tento(Não dá, sério. Não dá. Eu tentei escrever isso, mas simplesmente não funciona. Sério. Olha só. Já deu tudo errado antes de começar. Olha esse título: o ciclo inicia etc que merda. Piada concretista? Lógica circular? É idiota, eu fico com vergonha só de olhar. E aí vai pra essa merda de situação desinteressante – um cara conversa com uma menina e ela sai correndo e porra, não tem nem personagens, nem desenvolvimento nenhum – eu estou escrevendo ou brincando com fantoches? E aí vem essas intromissões do outro texto (que pra começo de conversa são o único motivo pra eu ter tentado escrever isso) que não funcionam de jeito nenhum e são totalmente idiotas, artificiais, pomposas, sem contar toda essa bosta de escrever com fontes diferentes – ‘É pra representar vozes diferentes! Legal, né?’ – que me dá enjôo. E aí vem o segundo parágrafo, com toda essa babaquice meio metafísica/espiritual que nem chega a ser interessante – e você tem de se esforçar bastante pra uma coisa dessas ficar desinteressante – com a ‘alma’ da menina – que, olha só como eu sou iconoclasta, nem é uma alma, porque ela tem sensações – assistindo tudo – quantas vezes isso já foi feito? um bilhão? – observando a si mesma, putaquepariu, que coisa mais melosa, e eu ainda deixo explícito que as vozes eram dela – sim, eu acabei de chamar todos meus leitores de incapazes de perceber o mais óbvio, valeu, eu adoro vocês – e aí ainda vem aquele final horrível nesse parágrafo, uma coisa pseudodramática, ‘Pobre de mim, estou presa em um universo estático, assistindo à vida passar e ela nem é interessante’; foda-se você, espero que seja entediante e você se mate, pelo menos uma alma cometendo suicídio talvez fosse mais interessante; e porra, esse parágrafo é todo mal escrito, sem nenhuma linguagem própria, sem ritmo, e Arial é uma fonte feia pra caralho e não serve pra voz dessa menina, nem a pau, eu devia estar delirando, meu deus. E aí vem a pior parte, a mais estúpida, ridícula, exagerada, sem desculpas – eu entendo se ninguém nunca mais quiser ler algo meu depois dessa, porque ela me fez ter vergonha de mim mesmo, falando sério – essa coisa de começar todas as sentenças com Eu já é um mau começo, o que eu quero provar, esse cara é autista, maluco, ou só um homem comum?, nenhuma das alternativas é interessante, esse assunto nunca teve uma chance de dar certo, e aí eu tento brincar com o tempo e mandar mensagens do fim do texto pro começo, que também são ignoradas, mas se isso não deu certo no primeiro parágrafo por que daria aqui, saca? E aí fica pior, a menina entrando na casa, o cara comendo, eu pareço algum imitador com síndrome de down de algum surrealista qualquer; o cara transando com ela, sugestão de necrofilia – SÉRIO! EU ME ODEIO! ESSE É O PONTO MAIS BAIXO AO QUAL EU POSSO CHEGAR! – e a quebra no tempo totalmente estúpida, polícia, prisão, ‘tentativa de reconstruir o passado’, parece coisa d’O Efeito Borboleta, que é praticamente o pior filme que existe, olha o que eu estou tentando plagiar, putaqueopariu. Aí eu desisto realmente da minha dignidade e resolvo me intrometer no texto, dizer que eu sei que tá ruim, eu sei, sabe o que isso significa? eu estou tentando criar cumplicidade com o leitor pra que ele goste mais de mim, não é patético? funciona? se funcionar você é um idiota, pode ter certeza; eu começo a discutir como o texto é escrito, os elementos, e isso é tão estúpido – e intrusivo, imagina se você contasse pra alguém EXATAMENTE como você está quando ela te perguntasse; não seria um pouco exagerado e assustador? – e faço tudo isso na esperança de salvar esse texto, enchendo de piadinhas e hipérboles sem sentido, porque quebrar a Quarta Parede é tãããão ousado e diferente, ninguém nunca viu algo igual, não é verdade?, e eu escrevo nesse estilo totalmente irritante e auto-referencial, no presente que nem chega a ser coerente, e porra, o que é essa piada com síndrome de down?, eu cheguei ao mau gosto extremo, e aí eu revelo também que até mesmo comentar o texto é um método de escrever o texto e aliciar o leitor, e comentar o comentário também é um método, e comentar o comentário do comentário é outro; e o estilo dos meus comentários deveria ser diferenciado, talvez até outra fonte, ou outro parêntese, mas já não dá mais pra mudar, tarde demais, o texto está ficando cada vez mais confuso e insuportável, sem pontuação adequada nem ritmo, e eu reclamo sobre a pontuação e o ritmo, o que é idiota, e eu reclamo sobre ter reclamado sobre a pontuação e o ritmo, o que é mais idiota ainda, e sinceramente vocês não acham que escrever um adendo tão estúpido e egocêntrico é algo que alguém só poderia fazer caso precisasse muito de atenção e tivesse medo de ser detestado, e eu escrevo falando sobre a minha própria carência, a auto-ridicularização cativa o leitor, e eu mostro meus próprios métodos de enganar o leitor, o que na verdade é apenas outro método, e esse seria mais outro, e esse seria mais outro, e esse seria mais outro, e esse seria mais outro, e esse seria mais outro, etc.) mudar tudo e não consigo, tudo acontece do mesmo jeito.

PS: Vejam só. Esse texto é imenso e não foi escrito para ser visualizado no blogger. As condições originais são no Word. Se alguém assim preferir, me pede que eu envio, etc.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Fia-se no verbo
gota a passo
a trama.
Liberta o grito inseguro!

Rompe a esfera
cativa seduzindo.
Crê-se no caminho
desfaz, desilusiona.

Traceja indistinto
além da guia.
Paradoxa, segue a estrada.
Segue o som.

Rasga alexandrino
o górdio enigma.
Conta no canto
a palavra dual.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Liberdade

Ele se levanta. Sai de casa. Se levanta. Se levanta. Sai de casa. Abre os olhos. Abre os olhos. Se levanta. Sai de casa. Deita na cama. Sai de casa. Ele morre. Ele sai de casa. Tac. Tic. Assiste à dança. Sai de casa. Ele nasce. Ele é concebido. Ele perde a virgindade. Ele faz seis anos. Ele olha para os lados. Ele se casa. Ele se apaixona. Morre. Olha para os lados. Se apaixona. Nasce. Passa no vestibular. Sai de casa. Acorda. Olha para os lados. Nasce. Ele pensa em algo. Morre. Ele passa mal. Ele é vacinado. É internado. Beija pela primeira vez. Pensa em algo. Ele vê algo errado. Nasce. Vai à escola. Ele procura o problema. Morre. Calça os sapatos. Veste as calças. Olha no relógio. Acorda. Olha no relógio. Ele viaja para o exterior. Vota. Quebra o braço. Lava o rosto. Ele escova os dentes. Ele almoça. Olha no relógio. Ele cai de um avião. Vai ao cinema. Tac. Amarra os sapatos. Tic. Olha para os lados. É assaltado. Brinca de esconde-esconde. É fichado. Começa a usar a mamadeira. Ele morre. Tac. Tac. Tac. Tic. Tac. Tac. Ele olha para o relógio. Ele não enxerga. Ele lê o futuro. Ele lê o passado. Ele reza. Nada. Ele se casa. Ele compra um anel. Tic. Ele morre. Ele se forma. Ele tem netos. Ele tem filhos. Faz doze anos. Tic. Ele sai de casa. Ele escreve a sua vida. Ele cozinha para a esposa. Entra numa briga. Nasce. Olha para os lados. Ele morre. Olha no relógio. Olha para o relógio. Olha. Ele ouve música. Ele sofre alucinações. Ele a engravida. Olha para os lados. Bebe pela primeira vez. Ele vê algo errado. Se apaixona. Ele olha para os lados. Olha para o relógio. Ele monta um quebra-cabeças. Olha no relógio. Brinca com o filho. Joga futebol. Vai à praia pela primeira vez. Tac. Ele morre. Percebe algo errado. Tic. Olha no relógio. Olha para o relógio. Olha. Escreve a sua história. Ele morre. Ele nasce. Tac. Ele morre. Ele pensa que há algo errado. Ele morre. Ele aprende a ler. Tic. Ele nasce. Ele se desespera. Ele morre. Ele olha para cima. Ele cuida do filho durante a noite. Morre. Nasce. Nasce. Sai de casa. Olha pra os lados. Olha para trás. Morre. Ele nasce. Perde a virgindade. Morre. Tac. Ele escreve a sua história. Se alfabetiza. Nasce. Olha no relógio. Morre. Olha no relógio. Nasce. Cozinha para a família. Nasce. Ele sabe o que há de errado. Nasce. Olha no relógio. Morre. Tic. Olha para o relógio. Ele aprende a andar. Ele vê o tempo. Morre. Tac. Ele é livre. Nasce. Morre. Ele não vê diferença. Morre. Tic. Nasce.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Círculo

Quando ele me perguntou
(com um sorriso no rosto)
se eu gostaria de segui-lo
eu não soube o que dizer.
Sorri, desviei o olhar
e, depois de um tempo,
concordei.

Ao longe
eu pude ver o que
ele queria me
mostrar.

Fábio andou lentamente até o que podia ver mas não entender. Colocou as mãos sobre aquilo, logo em seguida os braços, o corpo todo tentando abraçá-lo. Não era suficiente, e não foi suficiente quando falou com ele e não soube o que dizer. Uma pergunta foi feita e ele hesitou durante alguns segundos antes de dar a resposta errada. Não havia diferença, na verdade.

O que você acha
de ir até longe
onde você não pode
ver
nem mais nada?
É o seu futuro?

Quando ele
virou-se para trás
seu rosto já não era
o mesmo que eu conhecia.

As palavras que ele disse
talvez não fossem as que eu compreendi
murmuradas com a boca fechada.

Eu tentei
abraçá-lo
mas ele não era sólido o bastante.
Tentei me aproximar
mas ele insistia
sozinho.

Quando eu pisquei
pela segunda ou terceira vez
apenas eu estava lá
ouvindo as palavras que eu não sabia compreender.

Talvez seja uma questão de fé, de idealização. O caminho é a crença na continuidade. Talvez seja o não-pensamento e a ignorância. Fábio não soube quando deixou de ser, nem se. Seus olhos não enxergavam mais ninguém.

Andei para casa algo cambaleante
e não fui capaz de compreender o que meus pais disseram.
Deitei-me na cama
sentindo um zumbido ecoando
ruído branco.
Quando fechei os olhos
continuei vendo as mesmas coisas.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Um ou dois cigarros

Quando ele se levantou, não era mais. Tudo que aconteceu depois - o aborto; o divórcio; o desemprego; a morte do Rex; a perda da casa; a briga com o pai; a viagem para o México que terminou com os mergulhadores desaparecendo; a prisão que parecia algo saído de um pesadelo kafkiano; o dia em que tudo parecia mudar, durante o qual ele realmente teve esperança e acreditou que as coisas seriam diferentes, quando ele saiu e encontrou-se com ela e ela disse que talvez o perdoasse, e então eles se beijaram e ele não se lembrava de mais nada, a não ser de acordar a alguns km de lá e de nunca mais vê-la; a vez em que ele jurou que as coisas mudariam e minutos depois ele estava caído no chão de um bar, com uma farpa de madeira de 25cm fincada em seu ombro; a semana durante a qual ele fez pouco mais além de abrir os olhos às vezes e perceber a luminosidade antes de se esconder; a sensação da luz grudando em seu corpo e o enjôo constante e indefinível; o mês em que seus lábios sangraram continuamente, sem que ele tivesse conhecimento de qualquer razão para que isso acontecesse; a sua vontade se partindo em pedaços do tamanho de um caco de vidro, daqueles que você pisa na praia sem ver, sumindo aos poucos enquanto ele sentia cada vez mais ser um fantasma; quando começou parar falar pensar cérebro sumir; quando lapsos e então ele não e lembrava dia longe, perdido; a morte espalhando-se aos poucos, silvos sem perdão, homem sentado de olhos escuros e assustadores, a visão ao longe, mas tão perto, alcançando aquilo que não tinha importância; a decepção e a devoção, a fé; tudo - tudo que aconteceu foi apenas consequência.
Ele agradecia por ter tido tempo de fumar um cigarro ou dois antes que tudo acontecesse; por isso ele era grato, pois a maior parte das maldições não é tão paciente.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

A Mulher Deitada

A mulher deitada, como todos sabem, é um símbolo, um marco, muito mais que nada. Sua visão delirante - posta, horizontal, perfeita, angelical - inspira imaginação (nem se imagina quantas são): inúmeras cartas, centenas de poemas, livros inteiros, mortes horrendas.
Poucos são, dos quais se lembra, os homens inteiros, zero seqüelas, que viveram o tal, se recordam dela; mesmo assim, mesmo os completos, todos guardam sinais bem abertos: os olhos turvos, o rosto fechado, cabelos perdidos, voz bem baixa.
Tive a sorte, portanto, de encontrar-me com um: seu nome desconheço, mas isso não importa.
Perguntei-lhe, então, sem tempo para hesitar; afinal, como fora, seu encontro com a mulher.
Se já viram a morte, entenderão; caso contrário, inútil explicar: seu rosto empalideceu, sua voz aquietou, em mim seus olhos grudaram, parecia dividido (quebrado, talvez) entre medo e ódio. Murmurou os a seguires como quem clama a morte da mãe:
- Nunca não vi mulher deitada nenhuma, nem perto de nenhuma cheguei. Pergunte a outro idiota, pra você não tenho o que dizer.
Desaproximou-se, suado, e, a passos caducos, afastou-se, perdendo-se na morte dos olhos rapidamente.
Sabe-se então, com todo o bom senso, que o devido era bem simples: desistir dessa troça, ocupar-me de outr'algo, esquecer a tal fêmea, voltar para a vida.
Dizer tais opções, todavia, é mais fácil que cumpri-las: os olhos fechados, castos e espectrais, me acompanhavam em sonhos e devaneios, insistentes e chamativos, pedindo e mandando, de modo que não, não pude abandoná-la.
Foi tempos depois, anos quiçá, que mais um encontrei, de estado pior; voz bem gagueira, um olho cego, mãos que tremiam, corpo encolhido. Não foi o bastante, no entanto, para me espantar: minha obstinação, nessa hora, já era das mais irritantes, estúpidas e perigosas.

Dessa vez, porém, mudei a abordagem: fui sutil, sensato, serpenteante, sedutor; sibilei-lhe elogios, fui-lhe cortês, infiltrei-me em sua mente bem devagar, sabendo ser perigoso apressar-me.
Foi apenas depois de uma série, incansável e repetitiva, de longuíssimos diálogos, que cheguei ao que reproduz-se aqui.
Você viu, pelo que dizem, uma mulher, mulher diferente. Os olhos fechados, o rosto inocente. Sabe, não é mesmo, do que falo.
Mas vi, vi, vi, vi várias mulheres, centenas, até mais, tantas quantas há...
Mas sabe, sabe mesmo, de qual falo... Uma especial, não uma dessas centenas.
Sei, talvez... Sei, sei... Foi há tanto tanto tempo que eu eu nem lembro direito.
Mas lembra, não é.
E então contou-me, entre pequenos soluços, alertas e súplicas, o que eu desejava saber.
Nos dias seguintes, vivi de uma vez as obsessões de toda a vida de um homem.
Nos preparativos perdi-me mil cem vezes, e percebi que ao pensar nela meus olhos, tão confiáveis, se fechavam, e minhas mãos pegavam a si mesmas e se contorciam, dançando algum tango que eu não sabia compreender.
Sai, então, no dia inadiável, e o caminho era curto no pó e longo na alma.
O trajeto foi aborrecido, sem acontecimentos, cinza, infindável.
Cheguei, enfim, ao lugar onde, segundo tudo que eu podia queria acreditar, jazia a mulher deitada.
Aproximei-me, reverente, como um cruzado, tomado de êxtase religioso, se aproxima do graal.
Ela era, apenas. Inespecial e ainda assim, cantada por tantos, e, ainda assim, única, a mulher deitada.
Curvei-me sobre ela, a respiração a matar-me, incapaz de controle, exasperado e louco, e senti-lhe a respiração, doce e gelada, a roçar-me os lábios, incontrolados.
Beijei-a, estúpido, inconsequente, e perdi-me.
Não me lembro, não muito, de como foi, nem de como era, nem de onde, nem de nada; só pergunto-me, curioso, por que homem qualquer, respeitoso e inteligente, interessaria-se por tão simples, insignificante, mulher deitada.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Relatório 1369-2

Relatório 1369-2
Produtividade
Outubro/2007
Nêutron LTDA

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Outubro foi um bom mês para a produtividade na Empresa. Aumentamos a eficiência em 7,36% em relação ao mesmo período no ano passado, devido à política de tolerância zero às distrações. Os funcionários tornaram-se muito mais centrados e menos dispersos, de modo que nossa taxa de desperdício caiu assustadoramente (de 6% a 1,3%). A eficiência só não aumentou mais por alguns imprevistos com remessas enviadas da China, que certamente serão corrigidas no mês seguinte.
A produção total cresceu de forma leve, porém irrefutável, o que permitirá um pequeno (quase insignificante nos sentidos econômicos, porém significantíssimo psicologicamente) decréscimo nos preços, que claramente traduzir-se-á num crescimento de vendas.
Vocês precisam arrancar-lhes as cabeças e sorver delas o que houver dentro usando seus próprios dentes, lamber o seu sangue e festejar com os seus crânios, invadir suas casas e deliciar-se com as suas esposas; gritar alto e Louvar, entrar em êxtase, não esqueçam, não se esqueçam da Dádiva.
Foram feitos novos contratos, todos extremamente vantajosos para a Empresa, sendo um deles responsável por uma garantia de que 30% de todos e quaisquer produtos que não sejam vendidos até o fim do mês terão comprador, com um desconto apenas simbólico, funcionando como uma rede de segurança caso algum desastre ocorra.
Aproximem-se do menor deles, o mais assustado, e percorram seus cabelos com os dedos, carinhosa e misericordiosamente, digam que ele ficará bem e convençam-no, façam com que ele se aninhe aos seus pés e então matem-no e admirem a expressão característica, traição e medo, em seu rosto.
Os gastos operacionais foram bastante reduzidos, embora haja previsões de que podem cair muito mais. O uso da energia solar e a reciclagem de materiais poupou muito, e os funcionários foram instruídos, por uma série de palestras de cunho emotivo, a 'salvar a Natureza', e estão poupando e se esforçando de maneira totalmente voluntária, segundo eles mesmos.
Ouçam os corações deles baterem em conjunto e ouçam como se apagam um a um. Festejem na morte. Guardem dois ou três vivos para depois.
A produtividade, enfim, está mais alta do que nunca, e a Empresa é cada vez mais uma instituição sólida e, esperamos, Eterna.
Houve, no entanto, apenas um problema nesse mês.
Matem os últimos lentamente. Ofereçam-nos. Agradeçam. Renovem a Aliança.
Um funcionário que nunca havia dado sinais de problematização antes começou, inesperadamente, a reclamar de suas condições e questionar os Métodos da Empresa, ligando-a a figuras questionáveis e fazendo alegações paranóicas de cunho difamatório. Felizmente, antes que ele ganhasse ouvintes demais, ele foi surpreendido por uma oportuna acusação de pedofilia e já está preso.

Att

Fábio F. Felix,

Sub-Diretor de Produtividade

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Ela escrevia em várias cores

Ela escrevia em verde, azul e, principalmente, em vermelho, e em tantas outras cores que seria impossível contar. Ela dançava com os olhos daqueles que tentavam observá-la, tão incautos quanto aqueles que olham diretamente para o Sol.

ela rodopiava
sem suspiros
sem ardores
sem paixões
sem conclusão

Numa certa noite ela olhou para mim, diretamente pra mim, durante alguns segundos. Não foi tão especial quanto se teria pensado. Decepcionei-me instantaneamente, desviando meu olhar, embaraçado.
Isso foi há tanto tempo.

- É sério? Mesmo? Meu deus eu nem sei como agradecer... Vocês têm certeza? Não é alguma brincadeira, né? Engano? Tem certeza? Mesmo? Ai meu deus eu nem sei... Faz tanto tempo que eu queria... Você nem imagina, mesmo, nem imagina... Desde que eu era... Nem sei... Não sei quantos anos, sinceramente... Eu posso mesmo dizer... Posso? Eu queria dizer algo pra uma pessoa... A história é complicada, não... Não, não importa a história... Ela era... Meu deus, eu acho que estou quase chorando... Eu só queria que ela ouvisse isso, depois de tanto... Queria dizer pra ela...
- Desculpe, mas o tempo acabou, vai ter de ser na próxima vez.

Mulher: Então fala logo.
Homem: Não quero falar nada.
Mulher: Você fica levantando, levantando a mão e abrindo a boca e aí pára. Fala logo, tá me irritando.
Homem: Não é nada.
Mulher: Então fica sentado, ou então vai pra outro lugar, sei lá, tá me enchendo, porra.
Homem: Não tou fazendo nada...
Mulher: Ai, que saco.

- Homem abre a boca para dizer algo, levanta um pouco o rosto, mas desiste. Mulher, utilizando o computador, aparentemente não percebe. -

Mulher: Tou indo. Quando eu voltar eu te ligo, tá? Desculpa o stress, é que com a viagem e tudo...
Homem: Não foi nada.

- Mulher se levanta e sai pela porta -

Homem: ...Fica.

Ele a observava desejoso, intenso, suando, os lábios trêmulos, mordendo as bochechas enquanto engolia várias vezes a própria saliva, as mãos dentro dos bolsos apertando os próprios dedos compulsivamente, as sobrancelhas subindo descendo subindo descendo subindo descendo, o hhhhhnf aaaaaah da respiração repetitivo e assustador, à sua maneira; seu corpo oscilando pendularmente, relógio incompleto e quebrado. Ele piscou os olhos algumas outras vezes, e então voltou para casa.